domingo, 12 de fevereiro de 2012

A GREVE DA PM/BA E A IMPOTÊNCIA DO DIREITO: como endurecer sem perder a ternura?

Uma rápida reflexão sobre o fenômeno da greve de militares, sem respaldo constitucional, revela a incapacidade do direito diante de situações que colocam em xeque sua autonomia. Não me refiro, apenas, à incapacidade de “observação” do fenômeno a partir das “atuais” categorias dogmáticas, que não assimilam a interação entre validade, legitimidade e eficácia, mas também a impotência do sistema jurídico que, em situações de excepcionalidade, não consegue fazer valer a sua autonomia. Uma democracia só é viável se o sistema jurídico possuir uma autonomia conglobante. Uma autonomia que, por um lado, deveria prevalecer diante da corrupção do sistema econômico que impõe um modelo de austeridade fiscal e produz a justificativa “jurídica” para o não pagamento de soldos dignos e de gratificações previstas em lei. Uma autonomia que, por outro lado, consiga impor os limites constitucionais ao direito de greve, sem prejuízo do direito de rediscutir esses limites e, também, assimilar com integridade (e responsabilidade) eventuais atos de desobediência civil gerados pela falta de participação democrática no processo de revisão política do direito.
A greve da PM/BA foi o retrato desses desencontros. O que queremos? Reformas gestadas democraticamente, onde as regras do jogo devem ser respeitadas, inclusive aquelas que regem as modificações do próprio jogo democrático? Ou revoluções, que triplicam o número de mortes em um Estado que já possui no cotidiano índices dignos de uma “guerra civil”? São muitos os desencontros desse “direito torto”.

DESCUMPRIMENTO DO DIREITO DOS MILITARES – Os militares da polícia baiana possuem há muito direitos assegurados em lei que não são efetivados. Com um soldo deprimente que, segundo a nossa corte constitucional, não estaria sujeito sequer ao limite do salário mínimo, também não recebem a chamada GAP, uma gratificação escalonada que leva em conta a natureza, o risco e o desempenho do policial. Também é sabido que os policiais não possuem treinamento condizente ao risco de sua atividade, bem como armamento e equipamentos de segurança adequados. O Poder Executivo argumenta que o pagamento da GAP vem sendo impedido pelos limites orçamentários impostos aos entes federativos. A existência de limites está prevista na Constituição Federal (art. 169), modificada em parte pela Emenda 19, enquanto que o percentual está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Comp. 101/00) e, de fato, vem sendo imposta aos entes federativos como um “mantra”. Mas isso não exime o Executivo de sua responsabilidade política. Convém lembrar, apenas como exemplo, que no mesmo grupo de despesas da GAP estão os gastos do Estado com as funções e cargos comissionados, cuja existência foge, sem nenhuma razão para tanto, à regra constitucional do ingresso via concurso público e onera demasiadamente os gastos com pessoal. Por que se quer cumprir uma Lei Complementar quando os entes federativos não cumprem sequer a Constituição? Por que não eliminar cargos comissionados e dar efetividade à Lei Estadual que prevê a GAP, sem descumprir os limites da responsabilidade fiscal? E ainda que não fosse o caso, por que cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e deixar de cumprir a Lei Estadual? No Brasil temos mais de 1200 cursos de Direito, mas quantos professores de Direito Constitucional e Financeiro estão pensando nisto?

SEGURANÇA PÚBLICA E SOCIEDADE – A “questão” da Segurança Pública não é um “problema” de Segurança Pública. Todavia, os diversos setores da sociedade brasileira, salvo aqueles que integram a resistência da criminologia crítica, mesmo quando vão fundo, não vão no “próprio fundo”. A imprensa vê a segurança pública como um palco de imagens espetaculares, especialmente os programas sensacionalistas. No dia em que o caos se instaurou em Salvador, um jornal de TV fechada (!) gastou mais tempo noticiando o assassinato passional de uma Procuradora por seu marido do que cobrindo o movimento grevista de Salvador. O mesmo ocorreu com cobertura da morte de Withney Houston, uma figura que não possui nenhuma importância para a sociedade brasileira. O público perde espaço para o privado e o que importa é o espetáculo do mocinho – que, por razões corporativas abre espaço para a imprensa – contra o bandido, que, em “um país sério, deveria estar morto” (sic!). Como se já não o fosse. A comunidade, desprovida de qualquer senso crítico, despolitizada, permanece alienada diante da “publicização do privado”. E quem já achava o BBB deprimente, experimentem o “Mulheres Ricas”. O mercado exige uma segurança pública a serviço da propriedade e da paz em regiões “nobres”, mas no “avesso do gueto” as “grades do condomínio já se transformam em prisão”. O Estado, por sua vez, mantém os setores de segurança pública no calabouço. Não há transformações efetivas na área de inteligência da polícia, tampouco na “inteligência dos policiais” e muito menos no verdadeiro “problema” da “segurança pública”. Um soldado, que expõe sua vida – e a vida dos outros! – ganha menos que um técnico da burocracia estatal. Um Coronel ganha menos que um ascensorista do Senado. Que segurança pública queremos?

DESOBEDIÊNCIA CIVIL E AGIR ESTRATÉGICO – Se o direito é impotente, a questão se torna exclusivamente política e, neste campo, o agir estratégico é o que impera. “Farinha pouca, nosso pirão primeiro”. Já que o direito não garantiu aquilo que ele mesmo disse que ia garantir, mostrando-se impotente diante dessa degradação, é o poder político sem regras e sem escrúpulos que irá imperar. É evidente que atos de desobediência civil em resposta à leniência do poder público é justificável. Diria mais: mesmo sem termos produzido categorias jurídicas capazes de refletir questões como essa, é “juridicamente” justificável. O que não é justificável é a falta de escrúpulos e o clima de terror que se instalou em Salvador nos dias de greve. Nada justificará as mortes decorrentes do clima de insegurança, nem mesmo homens encapuzados com armas em punho para garantir o bloqueio de ruas e avenidas com veículos “roubados”. Ainda que o agir estratégico passe a ser a única alternativa diante da ausência de racionalidade dos sistemas sociais, sempre haverá limites. Se estamos lutando por “direitos”, os limites da luta não podem deixar de ser limites “jurídicos”. A não ser que queiramos abrir mão desse direito “imprestável” e fazer a revolução. Por mais simpatia que tenha aos movimentos sociais “revolucionários”, não vejo na revolução uma saída inteligente. E é curioso notar que, descumprindo o direito, o próprio movimento o reivindica como mecanismo de estabilização das conquistas, o que já os coloca distantes de um ideal revolucionário. Se for possível sair e entrar, a qualquer momento, no discurso jurídico, nunca saberemos a hora em que deveremos ou não confiar a ele a estabilidade de uma democracia cidadã. Reforçar a autonomia e a integridade do direito é a alternativa para uma necessária “reforma” democrática das nossas instituições, pois é a única maneira de “endurecermos” sem que percamos a “ternura”.

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