PEC 33 - Do sonho feliz de uma jurisdição à mítica realidade
“jabuticaba”: porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso.
A proposta de Ementa
Constitucional que tramita no Congresso e que, recentemente, foi aprovada
pela Comissão de Constituição e Justiça revela o desajuste entre os nossos
sistemas político e jurídico. Seu objetivo é, em síntese e supostamente,
controlar politicamente decisões do STF que tenham extrapolado os limites da
jurisdição e invadido a esfera do poder Legislativo, especialmente no tocante
às súmulas e decisões vinculantes. Boa parte das análises e críticas que vem sendo
feitas ao projeto, por sua vez, põe pelo avesso uma realidade já distorcida e
mantém a realidade mitológica do constitucionalismo brasileiro.
O equívoco das premissas e o primeiro avesso
Acredita-se que a jurisdição
deveria ser a “boca da constituição”, como se o modelo concebido por
Montesquieu tivesse sido, algum dia, viável e efetivamente instaurado. Esse
mito caiu por terra muito antes de pensarmos em jurisdição constitucional e
ainda no apogeu das codificações e sob o império do “The model of rules”. O sec. XIX, portanto, já havia acordado para a
incontornável criatividade da jurisdição, não sendo possível ao político
programar o direito prevendo todas as possibilidades de sua aplicação. Quando a
questão da jurisdição constitucional é acirrada no sec. XX, o grande problema
já não girava em torno do “como” julgar “sem criar”, mas sim de “quem” ficaria
a cargo o julgamento criativo, ponto central, por exemplo, do debate Schmidt-Kelsen.
A questão é mais complexa e não pode ser observada, exclusivamente, através de
critérios de “decisão”.
O equívoco do Judiciário e o segundo avesso
A questão do “como” julgar
retornará no cenário do pós-guerra, mas nenhuma de suas versões (tópicas,
hermenêuticas, estruturantes, discursivas, etc.) retomou o mito de que a aplicação
do direito seria uma mera “operação” de adjudicação. E, justamente por terem
abandonado a crença em fadas, duendes e gnomos, o constitucionalismo do
pós-guerra continuaria, mesmo em tempos de dirigismo, fortemente dependente da
regulamentação legislativa (inclusive o do “nosso” Canotilho). Nos locais em
que o sistema político (Legislativo) conduziu os rumos da leitura reflexiva da
constituição, a carga criativa da jurisdição constitucional não representou um
grande problema (ao menos para a estabilidade democrática desses Estados, já
que as teorias do direito e da constituição mantiveram viva essa questão),
sendo legitimada pela ausência de seletividade das demandas e certo pudor
político. O grande problema é que, no Brasil, o sistema político abriu mão do
protagonismo nos debates da esfera pública, escondendo-se na relação
fisiologista com o Poder Executivo e no caráter simbólico da
Constitucionalização de 1988, que vendia a ideia de que todos já possuíam todos
os direitos que precisavam. Uma espécie de fim da história política que, a
partir de então, aguardava apenas a sua realização. Por muito tempo, essa
função simbólica foi responsável por postergar demandas e irritações nos
sistemas político e jurídico, mas, junto com o seu paulatino esgotamento,
edificar-se-ia no Brasil um senso comum
teórico que, desvirtuando matrizes do Constitucionalismo europeu, oferece
soluções metodológicas “mágicas” que legitimariam o ativismo do Judiciário. Com
princípios, dignidade da pessoa humana e proporcionalidade já seria possível
prender e soltar, dar e receber. Já não se sabia mais o que era fruto de uma
criatividade inexorável ou de um ativismo antidemocrático.
O equívoco da política e o terceiro avesso
O cenário ativista, não só do
STF, mas do Judiciário como um todo, poderia ter sido um sinal para a política
brasileira reagir. Para, finalmente, deixarmos de acreditar que os princípios e
os programas constitucionais seriam o “fim” da política e que, a partir de
então, era necessário dizer o que diz a Constituição. Entretanto, os exemplos
de inércia são muitos (greve dos servidores públicos, liberdades civis dos
homossexuais, reforma política, regulamentação do sistema financeiro, etc.) e a
relação temática com as decisões ativistas do STF não é mera coincidência. É que
o ativismo da jurisdição passava a servir de válvula de escape para uma nova
modalidade de constitucionalização simbólica, agora exercida por uma jurisdição
também simbólica. As decisões ativistas do Judiciário, especialmente do STF,
estabilizavam conflitos de índole moral e religiosa, sem que houvesse o
comprometimento de um poder político apático e descompromissado, e encobriam a
incapacidade de nossa economia/política concretizar direitos sociais através de
decisões que consideravam, exclusivamente, critérios de microjustiça. O STF
fazia o trabalho “sujo” da política, limpava-o sob o discurso da neutralidade
constitucional e, por outro lado, não comprometia a política macroeconômica e o
stablishment. Mas, como os limites
desse “mandato” tácito são muito tênues, o exercício desse poder de programação
em larga escala passará a incomodar determinados segmentos da política e, neste
caso, também não teremos coincidências: a “bancada homofóbica” e as facções
prejudicadas no julgamento do mensalão serão os insurgentes. Estamos prestes a
cometer o quarto erro.
A destruição da diferença e quarto avesso
Os desencontros entre os sistemas
político e jurídico não serão resolvidos com a dissolução dessa diferença que é
fundamental à democracia. Direito é direito, política é política e a
Constituição dissolve os paradoxos. Se o método não tem permitido que o direito
seja direito – e, por outro lado, permite que ele seja política – a solução não
está em, ao reconhecer essa “corrupção”, tomar atribuições jurídicas da Corte
para, com isso, trazer de volta o político que se encontra ali escamoteado.
Neste caso, “ladrão que rouba ladrão” (metaforicamente falando, claro) não terá
“cem anos de perdão”. Teremos perdido as condições de uma sociedade democrática,
na qual o sistema político programa o jurídico a partir de procedimentos e
diálogos democráticos, enquanto o jurídico resolve tão somente os conflitos que
batem à sua porta, considerando, necessariamente, os parâmetros de um direito
democrático e criando apenas o necessário para manter a integridade desse
sistema. É na busca da integridade e(ou) autonomia do direito que seguem as
principais correntes teóricas contemporâneas que acreditam na jurisdição, seja
de índole hermenêutica (Dworkin, Streck), sistêmica (Neves, Campilongo, Schwartz)
ou discursiva (Habermas, Alexy, Häberle, Catoni). A PEC 33, na maioria de suas
disposições, tem, todavia, o objetivo de roubar o jurídico para, com isso,
retomar a política que foi apropriada pelo direito. Não podemos perder de vista que o direito se
apropriou de uma política abandonada pelo “político”. Cabe à política fazer
política. Se as súmulas incomodam, legislem. Se efeito erga omnes da jurisdição constitucional não é politicamente
adequado, reformem as leis que regulam a jurisdição e emendem a Constituição.
Votem o casamento gay, digam sim ou não. Saiam do armário. Promovam uma reforma
política que não seja eleitoreira, a exemplo da tentativa de alterar o regime
de criação de partidos políticos quando já sabemos quem serão os candidatos.
Democratizem o debate público e legitimem suas decisões. Cumpram o seu papel,
caso contrário, estarão colocando pelo avesso aquilo que já estava pelo avesso,
apenas desnudando a mítica realidade de uma “jurisdição constitucional jabuticaba”.