domingo, 28 de abril de 2013



PEC 33 - Do sonho feliz de uma jurisdição à mítica realidade “jabuticaba”: porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso.
A proposta de Ementa Constitucional que tramita no Congresso e que, recentemente, foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça revela o desajuste entre os nossos sistemas político e jurídico. Seu objetivo é, em síntese e supostamente, controlar politicamente decisões do STF que tenham extrapolado os limites da jurisdição e invadido a esfera do poder Legislativo, especialmente no tocante às súmulas e decisões vinculantes. Boa parte das análises e críticas que vem sendo feitas ao projeto, por sua vez, põe pelo avesso uma realidade já distorcida e mantém a realidade mitológica do constitucionalismo brasileiro.
O equívoco das premissas e o primeiro avesso
Acredita-se que a jurisdição deveria ser a “boca da constituição”, como se o modelo concebido por Montesquieu tivesse sido, algum dia, viável e efetivamente instaurado. Esse mito caiu por terra muito antes de pensarmos em jurisdição constitucional e ainda no apogeu das codificações e sob o império do “The model of rules”. O sec. XIX, portanto, já havia acordado para a incontornável criatividade da jurisdição, não sendo possível ao político programar o direito prevendo todas as possibilidades de sua aplicação. Quando a questão da jurisdição constitucional é acirrada no sec. XX, o grande problema já não girava em torno do “como” julgar “sem criar”, mas sim de “quem” ficaria a cargo o julgamento criativo, ponto central, por exemplo, do debate Schmidt-Kelsen. A questão é mais complexa e não pode ser observada, exclusivamente, através de critérios de “decisão”.
O equívoco do Judiciário e o segundo avesso
A questão do “como” julgar retornará no cenário do pós-guerra, mas nenhuma de suas versões (tópicas, hermenêuticas, estruturantes, discursivas, etc.) retomou o mito de que a aplicação do direito seria uma mera “operação” de adjudicação. E, justamente por terem abandonado a crença em fadas, duendes e gnomos, o constitucionalismo do pós-guerra continuaria, mesmo em tempos de dirigismo, fortemente dependente da regulamentação legislativa (inclusive o do “nosso” Canotilho). Nos locais em que o sistema político (Legislativo) conduziu os rumos da leitura reflexiva da constituição, a carga criativa da jurisdição constitucional não representou um grande problema (ao menos para a estabilidade democrática desses Estados, já que as teorias do direito e da constituição mantiveram viva essa questão), sendo legitimada pela ausência de seletividade das demandas e certo pudor político. O grande problema é que, no Brasil, o sistema político abriu mão do protagonismo nos debates da esfera pública, escondendo-se na relação fisiologista com o Poder Executivo e no caráter simbólico da Constitucionalização de 1988, que vendia a ideia de que todos já possuíam todos os direitos que precisavam. Uma espécie de fim da história política que, a partir de então, aguardava apenas a sua realização. Por muito tempo, essa função simbólica foi responsável por postergar demandas e irritações nos sistemas político e jurídico, mas, junto com o seu paulatino esgotamento, edificar-se-ia no Brasil um senso comum teórico que, desvirtuando matrizes do Constitucionalismo europeu, oferece soluções metodológicas “mágicas” que legitimariam o ativismo do Judiciário. Com princípios, dignidade da pessoa humana e proporcionalidade já seria possível prender e soltar, dar e receber. Já não se sabia mais o que era fruto de uma criatividade inexorável ou de um ativismo antidemocrático.
O equívoco da política e o terceiro avesso
O cenário ativista, não só do STF, mas do Judiciário como um todo, poderia ter sido um sinal para a política brasileira reagir. Para, finalmente, deixarmos de acreditar que os princípios e os programas constitucionais seriam o “fim” da política e que, a partir de então, era necessário dizer o que diz a Constituição. Entretanto, os exemplos de inércia são muitos (greve dos servidores públicos, liberdades civis dos homossexuais, reforma política, regulamentação do sistema financeiro, etc.) e a relação temática com as decisões ativistas do STF não é mera coincidência. É que o ativismo da jurisdição passava a servir de válvula de escape para uma nova modalidade de constitucionalização simbólica, agora exercida por uma jurisdição também simbólica. As decisões ativistas do Judiciário, especialmente do STF, estabilizavam conflitos de índole moral e religiosa, sem que houvesse o comprometimento de um poder político apático e descompromissado, e encobriam a incapacidade de nossa economia/política concretizar direitos sociais através de decisões que consideravam, exclusivamente, critérios de microjustiça. O STF fazia o trabalho “sujo” da política, limpava-o sob o discurso da neutralidade constitucional e, por outro lado, não comprometia a política macroeconômica e o stablishment. Mas, como os limites desse “mandato” tácito são muito tênues, o exercício desse poder de programação em larga escala passará a incomodar determinados segmentos da política e, neste caso, também não teremos coincidências: a “bancada homofóbica” e as facções prejudicadas no julgamento do mensalão serão os insurgentes. Estamos prestes a cometer o quarto erro.
A destruição da diferença e quarto avesso
Os desencontros entre os sistemas político e jurídico não serão resolvidos com a dissolução dessa diferença que é fundamental à democracia. Direito é direito, política é política e a Constituição dissolve os paradoxos. Se o método não tem permitido que o direito seja direito – e, por outro lado, permite que ele seja política – a solução não está em, ao reconhecer essa “corrupção”, tomar atribuições jurídicas da Corte para, com isso, trazer de volta o político que se encontra ali escamoteado. Neste caso, “ladrão que rouba ladrão” (metaforicamente falando, claro) não terá “cem anos de perdão”. Teremos perdido as condições de uma sociedade democrática, na qual o sistema político programa o jurídico a partir de procedimentos e diálogos democráticos, enquanto o jurídico resolve tão somente os conflitos que batem à sua porta, considerando, necessariamente, os parâmetros de um direito democrático e criando apenas o necessário para manter a integridade desse sistema. É na busca da integridade e(ou) autonomia do direito que seguem as principais correntes teóricas contemporâneas que acreditam na jurisdição, seja de índole hermenêutica (Dworkin, Streck), sistêmica (Neves, Campilongo, Schwartz) ou discursiva (Habermas, Alexy, Häberle, Catoni). A PEC 33, na maioria de suas disposições, tem, todavia, o objetivo de roubar o jurídico para, com isso, retomar a política que foi apropriada pelo direito.  Não podemos perder de vista que o direito se apropriou de uma política abandonada pelo “político”. Cabe à política fazer política. Se as súmulas incomodam, legislem. Se efeito erga omnes da jurisdição constitucional não é politicamente adequado, reformem as leis que regulam a jurisdição e emendem a Constituição. Votem o casamento gay, digam sim ou não. Saiam do armário. Promovam uma reforma política que não seja eleitoreira, a exemplo da tentativa de alterar o regime de criação de partidos políticos quando já sabemos quem serão os candidatos. Democratizem o debate público e legitimem suas decisões. Cumpram o seu papel, caso contrário, estarão colocando pelo avesso aquilo que já estava pelo avesso, apenas desnudando a mítica realidade de uma “jurisdição constitucional jabuticaba”.