É preocupante a importância que a
opinião pública, diretamente influenciada pela mídia (sempre desinformada e
superficial), vem dando ao Exame. De repente, a qualidade ou não dos nossos
cursos de direito – que representam mais da metade dos existentes no mundo – se resumiu ao índice de aprovação no Exame
da OAB. O grande problema é que o debate público que gira em torno do temido
Exame não passa de um “diálogo” onde muitos falam meias verdades para outros
tantos que não querem ouvir.
Vou começar levantando quatro
hipóteses, sendo a última aparentemente contraditória.
a) O Exame da
OAB, no atual modelo, não consegue selecionar bacharéis aptos ao exercício da
advocacia.
b) Cursos que
elegem como objetivo pedagógico a aprovação de seus alunos no Exame estão,
necessariamente, reduzindo a qualidade da educação jurídica.
c) Nem mesmo
aqueles cursos que optam por um ensino estratégico conseguirão preparar bons
candidatos para o Exame.
d) De fato, no
atual cenário, há uma relação indireta entre qualidade de um curso e os índices
que ele alcança no Exame da OAB.
Explico as quatro hipóteses e a
aparente contradição presente na última.
A - O Exame da OAB foi colonizado pelo modelo seletivo adotado em
concursos públicos no Brasil e que, nos últimos doze anos, fez surgir uma
indústria de cursos, manuais esquematizados (resumidos, facilitados, com
figurinhas…) e um modelo de professor que, no velho estilo de cursinho pré-vestibular,
faz de tudo para que o aluno “decore” algumas informações dogmáticas que podem
cair na prova. Nesse tipo de “ensino” não importa o “porquê” e o “como”, mas
tão somente a “fotografia” revelada no texto legal ou nas ementas
jurisprudenciais. Se um vírus nos computadores da Imprensa Nacional provocasse
a publicação no DOU de um texto de Lei onde constasse que “captivos est
taputivetar”, alguns institutos cobrariam no próximo concurso que organizassem
a seguinte questão: “Captivos est: a) taputivetir; b) taputivetor; c)
taputivetar e d) NDA”. Outros aguardariam o vírus chegar no boletim do STF. A
advocacia é muito mais que isso. Exige não apenas “informações”, mas um
tratamento cognitivo de uma dogmática sofisticada (estruturas analíticas)
aliada ao domínio pragmático das expectativas de comportamento dos players do sistema. As condições para
esse tipo de ação sequer são assimiláveis na Universidade – que não possui
laboratórios práticos capazes de simular esse jogo, além de estimular um
raciocínio sistemático, ao contrário da advocacia que exige enfoques
problemáticos – muito menos aferível no modelo de Exame ao qual nos referimos.
Atualmente, somente a prática advocatícia tem possibilitado esse aprendizado,
razão pela qual os estudantes que mais se aproximam desse “saber” são aqueles
poucos que tiveram a oportunidade de passar por bons estágios. Entretanto, esses
estudantes acabam muitas vezes optando no Exame por especialidades diferentes
daquelas que experimentaram no estágio, justamente porque essa boa experiência
não é decisiva para um modelo de concurso previsível e “decoreba”. Portanto, o
atual modelo de Exame aplicado pela OAB não é capaz de selecionar profissionais
aptos para a advocacia. Nós obteríamos a prova empírica dessa hipótese se
submetêssemos aqueles que já advogam ao exame. Quantos passariam? Não sou
contra a existência de “um” exame, especialmente se considerarmos o atual
cenário de cursos jurídicos no Brasil, mas sou totalmente contra a “este”
exame.
B – Em sendo assim, qualquer curso que assuma como estratégia
pedagógica a elevação dos índices de aprovação “neste” Exame estará levando
para seus alunos um tipo de “conhecimento” que pode até se parecer com o
Direito, mas que a ele não corresponde em sua integralidade. Nada contra aos
milhões de brasileiros que se dedicam a esse estudo reconhecidamente
“emburrecedor” na tentativa de melhorar de vida ou, muitas vezes, de
sobreviver. Nada contra aos colegas e empresários que transformaram a indústria
do “concurso” público em um grande negócio. “Farinha pouca, seu pirão
primeiro”. Porém, tudo contra ao modelo seletivo que incentiva esse tipo de
estudo e, mais ainda, tudo contra à colonização dos cursos de graduação por
esse modelo, selecionando conteúdo através da cultura do “resumo” e dos
“macetes”. Dos estudantes de Direito, exige-se o correto tratamento cognitivo
dessas informações, bem como habilidades para uma leitura crítica, conectada
aos fatores sócio-econômicos que justificam a existência deste ou daquele
direito. E quem exige é a sociedade, representada não só pelo MEC, mas pela
própria OAB, que jamais daria parecer favorável à criação de um curso que não
assumisse no seu projeto pedagógico esse compromisso. Ou seja, há um hiato
entre a visão presente na Comissão Nacional de Educação Jurídica e o modelo de seleção
implantado pela Comissão Nacional de Exame de Ordem. Desse modo, um ensino
voltado estrategicamente para que alguém passe em um Exame que sequer cumpre às
exigências do mercado profissional não possui nenhuma função social, apenas uma
função “individual”, incompatível com o papel das Instituições de Ensino
Superior - IES. Para isso, já existem os cursinhos.
C – Mas, e se ignorássemos todas essas questões e assumíssemos que
os cursos de Direito, especialmente aqueles mantidos por entidades privadas,
podem se transformar em unidades estratégicas de ensino voltadas para a
aprovação do Exame da OAB (ou de qualquer outro processo seletivo de caráter
público), teriam eles êxito? Tenho minhas dúvidas. Um curso com cinco anos de
duração não possui o time exigido
para esse tipo de preparo estratégico, pelo menos no que diz respeito ao
conteúdo. Conseguirá algum êxito (estratégico) no que se refere ao domínio da
“lógica” desse tipo de seleção, fazendo com que os alunos dominem as “técnicas”
para enfrentar questões objetivas, por exemplo. Todavia, sendo o curso de
graduação um curso de longa duração, os estudantes terão que, no momento
adequado, assumir um estudo voltado especificamente para o Exame. A disciplina
de Direito Constitucional, por exemplo, é vista normalmente entre o 2º e 4º
semestres do curso. O estudante só irá se submeter ao Exame quatro anos depois,
quando será obrigado a revisar todo conteúdo “informativo”, não apenas para
recordar, como também para tomar conhecimento das modificações no sistema e das
atuais análises de probabilidade. Esse “time” não é compatível com a estrutura
dos cursos de graduação, especialmente daqueles que receberam parecer favorável
da própria OAB. Se o formando necessita de um apoio estratégico para o estudo
do Exame ou de outros concursos, o lugar para obter esse apoio com eficiência é
no cursinho e não na Universidade.
D – E quanto à nossa quarta tese? Por que seria possível dizer que
há, de fato, uma relação indireta entre os índices de aprovação no Exame e a
qualidade dos cursos? É inegável que, se observarmos as 10 ou 20 primeiras
colocadas no ranking disponibilizado pela OAB, encontraremos nessas
instituições outros indicativos que nos convenceriam de sua qualidade. A
questão é que a aprovação de seus alunos no Exame da OAB não se deve
diretamente ao modelo de ensino dessas faculdades, mas sim a uma combinação de
fatores circulares e dialéticos que acabam estando presentes nos bons cursos.
Em primeiro lugar, bons cursos exigem de seus alunos um ritmo de estudo muito
mais intenso que cursos ruins, pois os cursos de forte reconhecimento não estão
preocupados com a evasão e, ao mesmo tempo, por serem as primeiras opções dos
estudantes, acabam possuindo um corpo discente melhor preparado para enfrentar
a educação superior. Alunos que já estão acostumados com esse ritmo desde o
ensino médio, especialmente desde o terceiro ano pré-vestibular. É a qualidade
do corpo discente, manifestada na sua dedicação ao estudo, que faz a diferença
no momento da aprovação no Exame ou em qualquer outro concurso. Em segundo
lugar, queiramos ou não, esses alunos são aqueles que possuem, em média, maior
poder aquisitivo, proporcionando-lhes duas coisas importantes: tempo para se
dedicar ao estudo, que falta justamente àqueles que trabalham ao longo do dia e
estudam apenas à noite, e dinheiro para pagar um bom cursinho. Mas, onde está
esse debate? Será que os alunos da USP – apenas para citar como exemplo uma das
primeiras colocadas – garantem bons índices de aprovação no Exame da OAB porque
seus professores de graduação estão pautando suas aulas nas provas elaboradas
pelos institutos de seleção? É evidente que não. Por mais contraditório que
isso possa parecer, os melhores cursos de graduação do país são justamente
aqueles que menos se preocupam com o resultado do Exame da OAB. É importante
que a comunidade, especialmente egressos do segundo grau e seus pais, saiba
disso.
Me revolta, com ênclise, a
superficialidade em que se pautam esses debates. Aqui são culpados não apenas a
OAB, mas também as Universidades, o MEC, as Secretarias de Educação e a Imprensa.
Faço um desafio: vamos cruzar os dados do Exame de Ordem com alguns outros indicativos,
tais como: a) renda; b) origem no ensino médio; c) tempo disponibilizado para o
estudo estratégico; d) apoio de cursinhos pré-exame, todos relacionados ao
aluno e não ao curso e, assim, perceberemos a importância dessas variáveis.
Coloquemos um aluno com sérias deficiências de base na USP, que para sobreviver
precise trabalhar 8 horas diárias, inclusive nas vésperas do exame, e vamos ver
se ele consegue ser aprovado no Exame. Ele sequer colaria grau e esse índice
negativo jamais iria aparecer nos resultados da USP ou de qualquer outra
instituição que assumisse um compromisso de excelência acadêmica. O diferencial
para esse tipo modelo de seleção não está nas IES, mas em outros fatores, associados
aos cursos de graduação apenas de forma indireta. A visão superficial do
problema, que associa de forma imediata os resultados no Exame com a qualidade
das graduações, por sua vez, está fazendo com que cursos bem intencionados e
com projetos pedagógicos inteligentes se afastem de seu propósito para uma
corrida “cega” pela melhoria dos índices de aprovação, tornando ainda mais
problemático o cenário do ensino jurídico no Brasil. Daqui a alguns anos,
quando estivermos discutindo, por exemplo, a possibilidade ou não da mutação
genética para que seres humanos se tornem mais resistentes à radiação e, com
isso, respondendo a uma demanda da indústria energético-nuclear, os alunos
formados nos bons cursos de graduação é que “passarão”, os demais, apenas
“passarinho”.