segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

EXAME DA OAB E QUALIDADE DO ENSINO JURÍDICO: DESENCONTROS DE UM MODELO CONTRADITÓRIO





É preocupante a importância que a opinião pública, diretamente influenciada pela mídia (sempre desinformada e superficial), vem dando ao Exame. De repente, a qualidade ou não dos nossos cursos de direito – que representam mais da metade dos existentes no mundo  – se resumiu ao índice de aprovação no Exame da OAB. O grande problema é que o debate público que gira em torno do temido Exame não passa de um “diálogo” onde muitos falam meias verdades para outros tantos que não querem ouvir.
Vou começar levantando quatro hipóteses, sendo a última aparentemente contraditória.

a) O Exame da OAB, no atual modelo, não consegue selecionar bacharéis aptos ao exercício da advocacia.
b) Cursos que elegem como objetivo pedagógico a aprovação de seus alunos no Exame estão, necessariamente, reduzindo a qualidade da educação jurídica.
c) Nem mesmo aqueles cursos que optam por um ensino estratégico conseguirão preparar bons candidatos para o Exame.
d) De fato, no atual cenário, há uma relação indireta entre qualidade de um curso e os índices que ele alcança no Exame da OAB.

Explico as quatro hipóteses e a aparente contradição presente na última.

A - O Exame da OAB foi colonizado pelo modelo seletivo adotado em concursos públicos no Brasil e que, nos últimos doze anos, fez surgir uma indústria de cursos, manuais esquematizados (resumidos, facilitados, com figurinhas…) e um modelo de professor que, no velho estilo de cursinho pré-vestibular, faz de tudo para que o aluno “decore” algumas informações dogmáticas que podem cair na prova. Nesse tipo de “ensino” não importa o “porquê” e o “como”, mas tão somente a “fotografia” revelada no texto legal ou nas ementas jurisprudenciais. Se um vírus nos computadores da Imprensa Nacional provocasse a publicação no DOU de um texto de Lei onde constasse que “captivos est taputivetar”, alguns institutos cobrariam no próximo concurso que organizassem a seguinte questão: “Captivos est: a) taputivetir; b) taputivetor; c) taputivetar e d) NDA”. Outros aguardariam o vírus chegar no boletim do STF. A advocacia é muito mais que isso. Exige não apenas “informações”, mas um tratamento cognitivo de uma dogmática sofisticada (estruturas analíticas) aliada ao domínio pragmático das expectativas de comportamento dos players do sistema. As condições para esse tipo de ação sequer são assimiláveis na Universidade – que não possui laboratórios práticos capazes de simular esse jogo, além de estimular um raciocínio sistemático, ao contrário da advocacia que exige enfoques problemáticos – muito menos aferível no modelo de Exame ao qual nos referimos. Atualmente, somente a prática advocatícia tem possibilitado esse aprendizado, razão pela qual os estudantes que mais se aproximam desse “saber” são aqueles poucos que tiveram a oportunidade de passar por bons estágios. Entretanto, esses estudantes acabam muitas vezes optando no Exame por especialidades diferentes daquelas que experimentaram no estágio, justamente porque essa boa experiência não é decisiva para um modelo de concurso previsível e “decoreba”. Portanto, o atual modelo de Exame aplicado pela OAB não é capaz de selecionar profissionais aptos para a advocacia. Nós obteríamos a prova empírica dessa hipótese se submetêssemos aqueles que já advogam ao exame. Quantos passariam? Não sou contra a existência de “um” exame, especialmente se considerarmos o atual cenário de cursos jurídicos no Brasil, mas sou totalmente contra a “este” exame.

B – Em sendo assim, qualquer curso que assuma como estratégia pedagógica a elevação dos índices de aprovação “neste” Exame estará levando para seus alunos um tipo de “conhecimento” que pode até se parecer com o Direito, mas que a ele não corresponde em sua integralidade. Nada contra aos milhões de brasileiros que se dedicam a esse estudo reconhecidamente “emburrecedor” na tentativa de melhorar de vida ou, muitas vezes, de sobreviver. Nada contra aos colegas e empresários que transformaram a indústria do “concurso” público em um grande negócio. “Farinha pouca, seu pirão primeiro”. Porém, tudo contra ao modelo seletivo que incentiva esse tipo de estudo e, mais ainda, tudo contra à colonização dos cursos de graduação por esse modelo, selecionando conteúdo através da cultura do “resumo” e dos “macetes”. Dos estudantes de Direito, exige-se o correto tratamento cognitivo dessas informações, bem como habilidades para uma leitura crítica, conectada aos fatores sócio-econômicos que justificam a existência deste ou daquele direito. E quem exige é a sociedade, representada não só pelo MEC, mas pela própria OAB, que jamais daria parecer favorável à criação de um curso que não assumisse no seu projeto pedagógico esse compromisso. Ou seja, há um hiato entre a visão presente na Comissão Nacional de Educação Jurídica e o modelo de seleção implantado pela Comissão Nacional de Exame de Ordem. Desse modo, um ensino voltado estrategicamente para que alguém passe em um Exame que sequer cumpre às exigências do mercado profissional não possui nenhuma função social, apenas uma função “individual”, incompatível com o papel das Instituições de Ensino Superior - IES. Para isso, já existem os cursinhos.

C – Mas, e se ignorássemos todas essas questões e assumíssemos que os cursos de Direito, especialmente aqueles mantidos por entidades privadas, podem se transformar em unidades estratégicas de ensino voltadas para a aprovação do Exame da OAB (ou de qualquer outro processo seletivo de caráter público), teriam eles êxito? Tenho minhas dúvidas. Um curso com cinco anos de duração não possui o time exigido para esse tipo de preparo estratégico, pelo menos no que diz respeito ao conteúdo. Conseguirá algum êxito (estratégico) no que se refere ao domínio da “lógica” desse tipo de seleção, fazendo com que os alunos dominem as “técnicas” para enfrentar questões objetivas, por exemplo. Todavia, sendo o curso de graduação um curso de longa duração, os estudantes terão que, no momento adequado, assumir um estudo voltado especificamente para o Exame. A disciplina de Direito Constitucional, por exemplo, é vista normalmente entre o 2º e 4º semestres do curso. O estudante só irá se submeter ao Exame quatro anos depois, quando será obrigado a revisar todo conteúdo “informativo”, não apenas para recordar, como também para tomar conhecimento das modificações no sistema e das atuais análises de probabilidade. Esse “time” não é compatível com a estrutura dos cursos de graduação, especialmente daqueles que receberam parecer favorável da própria OAB. Se o formando necessita de um apoio estratégico para o estudo do Exame ou de outros concursos, o lugar para obter esse apoio com eficiência é no cursinho e não na Universidade.

D – E quanto à nossa quarta tese? Por que seria possível dizer que há, de fato, uma relação indireta entre os índices de aprovação no Exame e a qualidade dos cursos? É inegável que, se observarmos as 10 ou 20 primeiras colocadas no ranking disponibilizado pela OAB, encontraremos nessas instituições outros indicativos que nos convenceriam de sua qualidade. A questão é que a aprovação de seus alunos no Exame da OAB não se deve diretamente ao modelo de ensino dessas faculdades, mas sim a uma combinação de fatores circulares e dialéticos que acabam estando presentes nos bons cursos. Em primeiro lugar, bons cursos exigem de seus alunos um ritmo de estudo muito mais intenso que cursos ruins, pois os cursos de forte reconhecimento não estão preocupados com a evasão e, ao mesmo tempo, por serem as primeiras opções dos estudantes, acabam possuindo um corpo discente melhor preparado para enfrentar a educação superior. Alunos que já estão acostumados com esse ritmo desde o ensino médio, especialmente desde o terceiro ano pré-vestibular. É a qualidade do corpo discente, manifestada na sua dedicação ao estudo, que faz a diferença no momento da aprovação no Exame ou em qualquer outro concurso. Em segundo lugar, queiramos ou não, esses alunos são aqueles que possuem, em média, maior poder aquisitivo, proporcionando-lhes duas coisas importantes: tempo para se dedicar ao estudo, que falta justamente àqueles que trabalham ao longo do dia e estudam apenas à noite, e dinheiro para pagar um bom cursinho. Mas, onde está esse debate? Será que os alunos da USP – apenas para citar como exemplo uma das primeiras colocadas – garantem bons índices de aprovação no Exame da OAB porque seus professores de graduação estão pautando suas aulas nas provas elaboradas pelos institutos de seleção? É evidente que não. Por mais contraditório que isso possa parecer, os melhores cursos de graduação do país são justamente aqueles que menos se preocupam com o resultado do Exame da OAB. É importante que a comunidade, especialmente egressos do segundo grau e seus pais, saiba disso.

Me revolta, com ênclise, a superficialidade em que se pautam esses debates. Aqui são culpados não apenas a OAB, mas também as Universidades, o MEC, as Secretarias de Educação e a Imprensa. Faço um desafio: vamos cruzar os dados do Exame de Ordem com alguns outros indicativos, tais como: a) renda; b) origem no ensino médio; c) tempo disponibilizado para o estudo estratégico; d) apoio de cursinhos pré-exame, todos relacionados ao aluno e não ao curso e, assim, perceberemos a importância dessas variáveis. Coloquemos um aluno com sérias deficiências de base na USP, que para sobreviver precise trabalhar 8 horas diárias, inclusive nas vésperas do exame, e vamos ver se ele consegue ser aprovado no Exame. Ele sequer colaria grau e esse índice negativo jamais iria aparecer nos resultados da USP ou de qualquer outra instituição que assumisse um compromisso de excelência acadêmica. O diferencial para esse tipo modelo de seleção não está nas IES, mas em outros fatores, associados aos cursos de graduação apenas de forma indireta. A visão superficial do problema, que associa de forma imediata os resultados no Exame com a qualidade das graduações, por sua vez, está fazendo com que cursos bem intencionados e com projetos pedagógicos inteligentes se afastem de seu propósito para uma corrida “cega” pela melhoria dos índices de aprovação, tornando ainda mais problemático o cenário do ensino jurídico no Brasil. Daqui a alguns anos, quando estivermos discutindo, por exemplo, a possibilidade ou não da mutação genética para que seres humanos se tornem mais resistentes à radiação e, com isso, respondendo a uma demanda da indústria energético-nuclear, os alunos formados nos bons cursos de graduação é que “passarão”, os demais, apenas “passarinho”.